sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Um conto qualquer - parte I

Inverno. São Paulo - chuva forte. 23hs46mins.
No consultório.



Era para terminar o expediente mais ou menos às três horas atrás, mas meu último paciente exigiu mais disponibilidade de tempo. Do meu tempo. Quer dizer, achei que seria meu último paciente...
Estava desesperado quando o que seria o último paciente foi finalmente embora. Não tinha conseguido até àquela hora ligar para minha mulher avisando que me atrasaria para voltar para casa, e lhe contar o ocorrido. E também, como todo paulistano sabe; São Paulo pára quando cai uma gota. E para piorar a minha angustia, o telefone da minha casa aparentava problema. A gravação anunciou que a linha estava temporariamente fora de serviço - ou seja, era fácil deduzir que não havia energia no bairro. Resolvi me aventurar, enfrentar a chuva na volta p'ra casa, fosse a hora que fosse. Logo, depositei minhas chaves no bolso direito da calça, como de costume. Peguei o meu casaco no bengaleiro e me direcionei à porta. Deveria ter notado no chão, perto da porta uma sombra, como um obstáculo entre o espaço do rodapé onde a luz do corredor, que se projetava, era impedida de atravessar. Eu devia ter notado que havia alguém atrás da porta só esperando que a mesma fosse aberta. Devia, mas não fui tão cauteloso. Apaguei a luz. Abri a porta.

Minhas pernas fraquejaram. Senti meu estômago revirar inúmeras vezes. E o frio despencou da cabeça aos pés quando vi o vulto a minha frente, que aos poucos tomou forma de uma pessoa. Tudo isso numa fração de segundos. Era um rapaz, o meu mais novo paciente. Após o susto, notei que ele estava encharcado. Os pingos que caíam das mangas de sua jaqueta faziam um som agradável ao atingirem o carpete tufado à prova de manchas, recém colocado.
- O que está fazendo aqui à essa hora? Sabe que meu horário acabou faz um tempo... - estava muito cansado, mas eu teria que saber o motivo da presença do rapaz. Sei que seria anti-ético deixar de ajudar um paciente, mesmo sendo fora de hora e se, obviamente, o caso demonstrasse uma extrema urgência. Entretanto, no caso do rapaz, eu ainda teria que julgar a gravidade da situação. Ele sangrava pelo nariz.
- O que ainda faz aqui então? - ele retrucou. Observei no seu rosto, mesmo contra a luz do abajur no corredor, que talvez acabara de chegar de uma briga. Seu lábio inferior estava grosseiramente inchado e no canto do mesmo havia um corte que começou a sagrar depois que ele esfregou a mão molhada em sua boca. Julguei a situação como sendo Inusitada à Séria, a qual precisava de uma conversa e de manter o paciente abrigado em segurança.
- Entra... você está sangrando. - não havia dúvidas que não voltaria tão cedo para casa.

Não houve diálogo até que ele entrasse no recinto, que eu lhe emprestasse a toalha de rosto que ficava no pequeno banheiro do consultório para que ao menos pudesse se enxugar e limpar o corte. Liguei a luz no consultório. Até então só havia gestos do tipo; apontar para a poltrona para que se sentasse. E a negação do pedido, o balançar brevemente da cabeça. Ficamos calados por alguns instantes, preferi deixá-lo a vontade para contar o que aconteceu. Nos permanecemos em pé.
- Eu não queria... - disse quase para ele mesmo, mas logo hesitou. E neste momento, temi que desistisse de me contar e que fosse embora. Eu precisava demonstrar mais interesse e preocupação com o seu problema, não que eu já não estivesse.
- Não queria o quê...
- Não queria brigar. - e ele me interrompeu. Aparentemente estava calmo, o que de fato não era para ser normal, já que obviamente ele foi espancado, outra vez. - Eles voltaram...
Eu já sabia do que se tratava e essa não foi a primeira, ou a terceira vez que ele chegava praticamente arrebentado ao meu consultório, contudo, dessa vez, havia algo em seu olhar que me perturbava, só não sabia o que era. Ou tinha certo medo de saber, bem da verdade era essa. Ele havia me contado que era hostilizado por algumas pessoas da vizinhança da qual morava. Elas não entendiam seu problema, não acreditavam que ele não era de fato um maluco, que se tratava de uma pessoa necessitada de cuidados e compreensão, mas a ignorância as faziam agir da pior forma, com violência. O que não dá para entender é que, em pleno século XXI, ainda existam pessoas desprovidas de bom senso a ponto de agirem como animais umas com as outras.

- Acredite, eu sei que você não brigaria com qualquer um sem o propósito de se defender, mas o que exatamente aconteceu? Foram os mesmos que te bateram na semana passada? Eu posso... - uma imagem se impregnou na minha mente; era uma cena. Cinco pessoas num lugar parecido com uma quadra de futebol. Tinha algumas nuvens pesadas, escuras, só com um pedaço de céu limpo que se via a lua, apesar da chuva, iluminando o local. Não se via rostos. Só os seus contornos, vultos, que estavam aglomerados ao redor de um outro vulto que se encontrava deitado no chão. Apanhava das sombras, a sombra caída. De repente, ouviu-se, além dos chutes, da respiração ofegante, gemidos de dor, gritos de raiva daquelas criaturas, um tiro. Todos se afastaram, exceto o que foi atingido pelo tiro. Mais um caído. O que levava a sova, se levantou com algo metálico na mão. O reconheci como sendo o meu paciente. E ele logo descarregou a arma em cima dos vultos desesperados, que caíam... caíam... Um por um. - te ajudar...
- Eu sei que pode. - se manteve imóvel perto do divã, em pé. De cabeça baixa, mas sem sinal algum de tristeza ou arrependimento em sua postura. Me preparava para o pior, ouvir dele exatamente aquilo que imaginei. Uma chacina. - Por isso estou aqui, doutor.

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