terça-feira, 24 de agosto de 2010

Um conto qualquer - parte II

- Esclareça-me mais uma coisa... - do meu paciente não saiu sequer uma palavra. Respondia ora assentindo, ora discordando com a cabeça. Não me importava, precisava saber todos, se possível, os detalhes da briga e o que ele fez antes de chegar aqui. Enquanto isso, me peguei rezando para que ele não tivesse cometido nenhuma atrocidade. - Você revidou?
Novamente ele assentiu com a cabeça. Gelei. Caiu um raio bem próximo. Primeiro a luz, depois o som. O barulho foi tão terrível que me fez afastar da onde estava. Meu paciente, tive a impressão, que nem se moveu, mas nessa hora ele olhava diretamente pra mim.
- Como revidou? - finalmente ele se mexeu. Se dirigiu para perto da mesinha de centro, ao lado do divã. Fez que sentaria na beirada do móvel estofado, e num movimento rápido, depositou um objeto pontiagudo na mesinha de madeira, que me pareceu sair de dentro da manga direita da jaqueta. Ele olhava para mim o tempo todo durante seu movimento. Queria observar minha reação desde o início, pensei. Eu fiz o mesmo, observei meu paciente. Acabei notando que sua mão e a manga, a qual estava sobre a mesa de centro, estavam sujas. Me pareceu sangue. Ok, seu rosto estava machucado, talvez ele limpou o rosto justamente com essa manga, e consequentemente, sujou a mão... Ou não. Calmamente meu paciente retirou a mão de cima do objeto que estava fincado na mesa. Era um canivete. Igualmente sujo. De sangue. Era a sua resposta.

- Não... você não... - não conseguia pronunciar as palavras corretamente e nem as fazer sair de minha boca. Com as mãos dentro dos bolsos, ele deixou escapar um riso de deboche. Fiquei atônito.
- Não consegue mais falar, doutor? - sua calma me deixava nervoso e ele sabia disso. A verdade era que eu queria sair correndo até a mesinha, tirar aquele canivete dali, ir ao telefone e chamar a polícia, mas precisava me manter racional mesmo estando à beira do pânico. Ele era bem mais jovem do que eu, mais ágil também. Perderia fácil no quesito rapidez.
- Não consigo acreditar que você foi capaz de... Matar alguém! - meu paciente sofria de transtorno psicótico agudo. E há três anos atrás, foi pego ao lado de duas crianças brincando com facas. Uma mulher aos berros, dizia que o viu ameaçando as crianças. Ele tentava se defender dizendo que fingiam que as facas eram espadas, que era uma brincadeira. Ele foi internado, saiu faz um ano e meio. Para uma pessoa normal, isso é um verdadeiro absurdo, entretanto, para quem sofre de transtorno psicótico, não. Porque há uma carência de visão crítica que leva o indivíduo a não reconhecer o caráter estranho de seu comportamento. Por mais que pacientes com psicose não têm noção real de perigo e do que estão fazendo, muitas vezes eles não têm a intenção maldosa de, por exemplo, cometer um homicídio. Ao menos, eu acreditava nisso.
- Não! Não matei ninguém! - durante todo o tempo daquela conversa, meu paciente não foi tão incisivo como foi ao dizer que não havia de fato matado alguém. Aquilo me aliviou, e me deixou confuso. Ele franziu a testa ao me contestar. A pior hipótese dessa história toda, era que ele estivesse mentindo.
- Por favor, não quis ofender, mas qualquer um pensaria isso ao te ver com esse canivete, sujo de sangue... Enfim... Já conversamos sobre os possíveis comportamentos que levam as outras pessoas julgarem mal...
- Eu sei, mas não foi o que fiz. Só me defendi. - convicção na fala. Posso confiar. Na verdade, pacientes psicóticos não costumam lembrar de tudo o que fizeram. Portanto, não posso. Não ainda.

Respirei fundo pela primeira vez. Resolvi mostrar a ele que acreditava nele, portanto, me aproximei da minha poltrona e me sentei. Acabei notando que já passava das duas da manhã, e a chuva já tinha passado também. Minha mulher devia estar muito preocupada, mas se houvesse luz no bairro, ela já teria me ligado ou no celular, ou no consultório.
- Tudo bem, eu compreendo.
- Esse sangue não é meu. Ele entrou na minha frente, só empunhei a faca e ele entrou na minha frente, mas ele correu. Fugiu. E eu vim pra cá.
- Como é? Não é seu esse sangue em sua mão? - mesmo sido pego de surpresa, estava certo em não confiá-lo totalmente. O ferido podia estar morto naquele momento - Repete... Ele entrou na sua frente, você o feriu, é o que quer dizer?
- Acho que eu o feri, mas ele está bem. Eu não o matei se é o que quer saber. - levei minha mão ao bolso direito da calça, meu celular estava lá. Mudei de posição discretamente para o lado, e me preparei para ligar para a clínica psiquiátrica a qualquer momento. Lembrei-me de perguntar a ele se deixou de tomar os remédios, ele não me respondeu. - Ele vai ficar bem, e voltará a me bater, junto com os outros... - meu paciente já não estava mais calmo. Talvez por ter percebido que o fato deles, os outros, como ele mesmo os tratava, voltarem a lhe bater seria bem mais provável do que alguém o levar a sério. Levei a outra mão à testa. Não me lembro do momento em que comecei a suar.
- Você não tomou os remédios... esfaqueou sabe lá quantas pessoas...
- Um cara, e não disse que não tomei. - ele, outra vez, me interrompeu. Num tom mais agressivo.
- Mas não disse que tomou. - temi que ele agisse com violência e que eu não pudesse manter o controle da situação. Ele se levantou, e se dirigiu ao banheiro.
- Vou lá... - simplesmente disse e andou.
- Tudo bem. - ouvi o bater de porta.
Olhei para onde havia um canivete. Ele não estava na mesa.

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